Uma nota técnica emitida conjuntamente pelo Ministério Público Federal (MPF) e pela Defensoria Pública da União (DPU) considera inconstitucional a internação compulsória de usuários de drogas, tal como defendeu o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes. Ao longo de 15 páginas, as duas instituições sustentam que a medida implica graves violações constitucionais, pois impõe uma restrição à liberdade e trata a saúde como uma obrigação imposta aos indivíduos e não como um direito fundamental.
“A Constituição Federal afirma que ninguém será privado de liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. Ora, a internação compulsória é a privação de liberdade sob o pretexto de submeter um sujeito a tratamento de saúde”, registra o documento. As duas instituições consideram ainda que a medida fere não apenas dispositivos constitucionais como também tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é parte.
Para o MPF e a DPU, o Estado não pode adotar medidas de higienismo social. As instituições consideram que o uso da internação compulsória para tratamento de dependentes químicos sem o consentimento deles geralmente tem como objetivo não declarado a retirada dessas pessoas dos espaços públicos. Também apontam que a proposta está na contramão da Lei Federal 10.216/2001, que instituiu a Política Antimanicomial. Ela estabelece a adoção de um modelo assistencial em saúde mental, com ênfase na reinserção social, por meio de tratamento ambulatorial, que deve sempre ser priorizado em face da internação.
Eduardo Paes anunciou a medida por meio de publicação nas redes sociais. Ele informou ter solicitado ao secretário municipal de Saúde, Daniel Soranz, uma proposta para implementar a internação compulsória de usuários de drogas.
"Não é mais admissível que diferentes áreas de nossa cidade fiquem com pessoas nas ruas que não aceitam qualquer tipo de acolhimento e que, mesmo abordadas em diferentes oportunidades pelas equipes da prefeitura e autoridades policiais, acabem cometendo crimes. Não podemos generalizar, mas as amarras impostas às autoridades públicas para combater o caos que vemos nas ruas da cidade demandam instrumentos efetivos para se evitar que essa rotina prossiga", escreveu o prefeito.
No mesmo dia, o secretário Daniel Soranz endossou a
iniciativa. “Estamos vendo uma série de casos de pacientes que passam pelas
unidades ambulatoriais, com situação clínica se agravando e indo a óbito.
Tivemos notícia de um garoto de 20 anos, três meses fora de casa, que foi a
óbito por overdose e dependência química. Isso é uma preocupação imensa, o
número de óbitos desses casos vem aumentando muito no município do Rio de
Janeiro”, disse. Ele ressaltou que a medida seria aplicada nos casos em que o
usuário de drogas não tenha condição de responder por si naquele momento.
A postagem de Eduardo Paes, no entanto, sofreu críticas
de pesquisadores. Entidades que atuam nas áreas da saúde e dos direitos humanos
consideram que as altas taxas de recaídas logo nos primeiros dias após o fim de
tratamentos compulsórios indicam que a medida não funciona. A Organização
Pan-Americana da Saúde (OPAS), representação regional da Organização Mundial da
Saúde (OMS), também tem posição contrária por considerá-la inadequada e ineficaz.
Após as críticas, Paes voltou às redes sociais nesta
sexta-feira (24) compartilhando um artigo que elogia a medida. "Não se
falou em retirá-los com tiro, porrada e bomba pela polícia. Mas, sim, através
da atuação de médicos e assistentes sociais, cuidadosamente preparados para a
tarefa", escreveu Ricardo Bruno, autor do texto.
A vereadora Luciana Boiteaux respondeu Paes nas redes
sociais. Crítica da internação compulsória, ela defendeu que a situação dos
usuários de drogas deve ser enfrentada fortalecendo os centros de Atenção
Psicossocial (CAPs), que estariam precarizados. "Muito importante falarmos
em cuidados de saúde mental, que devem ser ofertados a todos como política
pública", escreveu.
A nota técnica emitida pela DPU e pelo MPF também defende a
importância dos CAPs. "São responsáveis pela indicação do acolhimento,
pelo acompanhamento especializado durante esse período, pelo planejamento da
saída e pelo seguimento do cuidado após a saída, devendo promover a reinserção
do usuário na comunidade. É estabelecido um prazo máximo de nove meses de
acolhimento, restrito a adultos", registra o documento.
DPU e MPF observam que a internação deve se dar sempre em
caráter individual, sendo vedada sua adoção como política pública massiva.
Também aponta que a legislação até permite a internação compulsória, porém
apenas de forma excepcional, como no caso em que o usuário de droga comete
crime.
Debate nos tribunais
Conforme a Lei Federal 10.216/2001, também conhecida como Lei da Reforma
Psiquiátrica, há três tipos de internação psiquiátrica. A primeira é a
voluntária, quando há concordância do paciente. A segunda é a involuntária,
solicitada por familiares e por responsável legal. Já a internação
compulsória deve ser fruto de determinação judicial. Nestes dois últimos
casos, onde não há consentimento do paciente, a medida deve ser adotada de
forma excepcional.
No caso dos usuários de drogas que são também pessoas em
situação de rua, o debate envolve ainda outros elementos. Em agosto desse ano,
o Supremo Tribunal Federal (STF) referendou uma liminar concedida pelo ministro
Alexandre de Moraes que deu prazo para que o governo federal elabore um plano
para a efetiva implementação de uma política nacional para acolhimento dessa
população e determinou que estados e municípios observem diretrizes normativas.
A decisão também proibiu o recolhimento forçado de bens e pertences, a remoção
e o transporte compulsório de pessoas e o emprego de arquitetura hostil.
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